Há 10 anos escrevi na Folha de São Paulo sobre a importância de uma regulação do setor de telecomunicações não apenas focada na certeza do presente, mas com a necessária visão ajustada para o futuro.
Regulação 2.0 trouxe a minha percepção sobre a atuação para os próximos anos da Agência Nacional de Telecomunicações – Anatel mais "focada nas políticas de acesso às redes de alta velocidade, na isonomia entre agentes e, sobretudo, no trato de usuários cada vez mais maduros e exigentes".
O artigo, publicado para o 13º aniversário da agência, já pontuava o consumidor como protagonista e usuário dos múltiplos serviços e tecnologias, bem como também considerava a dinamicidade das telecomunicações ao vislumbrar uma Anatel "cada vez mais de telecomunicações e menos de telefonia".
Após uma década, esse caminho foi percorrido não apenas por esses pontos, mas também por muitos outros. O 3G e o 4G se consolidaram, o consumidor passou a contar com canais de comunicação mais eficazes e aplicativos. Siglas como TAC, PGMC, SNOA, GIRED, EAD, RGC e PERT saíram do imaginário para o mundo real, assim como a mudança estrutural que modernizou a agência.
Os ganhos e os resultados positivos só não foram mais expressivos porque mudanças na Lei Geral de Telecomunicações – LGT e na Lei do Fundo de Universalização das Telecomunicações – Fust aconteceram outro dia. Nossas atenções agora se voltam para o aguardado Regime Especial de Tributação para a Internet das Coisas – IoT .
Com apenas 13 anos de existência em 2010, a Anatel ainda buscava seu amadurecimento. Hoje, aos 23, atingida a maioridade, seu papel e reconhecimento pela sociedade reafirmam sua excelência, inclusive nos fóruns internacionais.
Transformações
Contudo, podemos testemunhar nos próximos anos as maiores transformações regulatórias desde a desestatização. A evolução tecnológica e a modernização do conjunto de regulamentos, de planos e de regras que constituem o marco regulatório para o setor de telecomunicações não permitem que a Anatel apenas acompanhe tendências.
A Regulação 3.0 na prática já começou e seu mote é a Simplificação Regulatória . Segundo a própria Anatel, "este processo começou com sua reestruturação, em 2013, com a coordenação de todos os processos de regulamentação por uma única área e a instituição da Análise de Impacto Regulatório no processo de regulamentação. Após isto foi iniciada a construção da Agenda Regulatória , em 2015, alinhada ao planejamento estratégico da Agência".
Dois pilares legais relevantes apontam nessa direção: a Lei de Declaração de Direitos de Liberdade Econômica e a Lei Geral das Agências. A primeira, busca desburocratizar, facilitar os negócios, fomentar a competição sadia e a livre iniciativa, expressamente rechaçando o que chamou de abuso do poder regulatório.
Já a Lei Geral das Agências busca limites ao poder sancionador em "medida superior àquela necessária ao atendimento do interesse público" e a realização de Análise de Impacto Regulatório – AIR que anteceda o poder normatizador.
A regulação passa a ter um papel de mais observação e menos intervenção. A autorregulação regulada ( enforced self-regulation ) ou corregulação , por exemplo, busca induzir o mercado em um modelo de repartição e reconhecimento de responsabilidades. Em matéria de proteção de dados pessoais, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados – ANPD pode reconhecer e divulgar regras de boas pra?ticas e de governança dos agentes de tratamento, ou seja, emanadas dos administrados.
A corregulação também está presente no processo de criação de entidades, como a exitosa EAD – Entidade Administradora da Digitalização da TV , formada pelas empresas vencedoras do segundo leilão do 4G. Experiências semelhantes são observadas no SNOA – Sistema de Negociação de Ofertas de Atacado por Entidade Supervisora e na Entidade Administradora da Portabilidade Numérica no Brasil .
Outra tendência é a regulação responsiva . É praticamente impossível pensar nesse assunto sem referir-se a pirâmide regulatória de Ian Ayres e John Braithwaite .
Para eles, a teoria destaca os limites da regulamentação como uma transação entre o Estado e as empresas. Há uma discussão para avaliar qual a melhor estratégia ou forma de atuação, isto é, a melhor resposta regulatória. O que é melhor, punir ou persuadir?
Na base da pirâmide estão as medidas de persuasão para agentes econômicos mais sensatos e colaborativos. No meio, medidas punitivas para agentes racionais. E no topo estão as medidas drásticas como o cancelamento de uma concessão ou licença passíveis de aplicação aos agentes sem conserto. Vale conferir no site da Anatel a bela apresentação de Alexandre Pinheiro da SP Communications sobre o tema.
O Regulamento de Qualidade dos Serviços de Telecomunicações – RQUAL , por exemplo, assume a atuação de forma responsiva como princípio e a traz em seu bojo a "regulação responsiva, com adoção de medidas proporcionais ao risco identificado e à conduta das prestadoras".
Sandbox regulatório
A Consulta Pública nº 65 recentemente publicada pela Anatel propõe a simplificação e a modernização normativa do setor de telecomunicações como pilar para a evolução na prestação de serviços. Nesse sentido, o Sandbox Regulatório ou ambiente regulatório experimental , ferramenta já aplicada no setor financeiro, especialmente com a explosão de fintechs no país, se apresenta como uma iniciativa com ganhos para todos os interessados.
O conceito original vem da tecnologia para experimentar mudanças de código de programação em ambientes isolados e pode ser resumida em uma única palavra: teste . Esses espaços de experimentação na regulação permitem que empresas e seus modelos de negócios inovadores que não se encaixem na legislação vigente operem temporariamente de forma livre, mas controlada.
Para o Banco Central, um dos benefícios é o "teste de um projeto inovador com clientes reais, sujeito a requisitos regulatórios customizados e mais brandos do que aqueles estabelecidos para as instituições incumbentes".
O importante e urgente Marco Legal das Startups em discussão no Congresso Nacional, define o ambiente regulatório experimental como o "conjunto de condições especiais simplificadas para que as pessoas juri?dicas participantes possam receber autorização temporária dos órgãos ou das entidades com competência de regulamentação setorial para desenvolver modelos de nego?cios inovadores e testar técnicas e tecnologias experimentais, mediante o cumprimento de crite?rios e limites previamente estabelecidos pelo órgão ou entidade reguladora e por meio de procedimento facilitado."
Para as telecomunicações que há muito já autorizam o Serviço Especial para Fins Científicos e Experimentais de equipamentos e técnicas não será difícil evoluir para a testagem de modelos de negócios com visão de criação de um ambiente supervisionado que autorize o teste de produtos e modelos de nego?cios com caráter inovador.
Em 2010, entendi que a nova ordem regulatória impunha à Anatel "a ampliação dos canais de comunicação e a implantação de novas ferramentas de interação". Hoje, a nova ordem regulatória se confunde à nova ordem tecnológica.
Nesse contexto, a discussão global sobre a tão falada 5ª Geração de Telefonia Móvel International Mobile Telecommunications-2020 (IMT-2020 Standard), convida a Anatel participar de questões geopolíticas para além do Edital do Leilão das faixas de radiofrequência.
Uma verdadeira aula sobre as implicações do 5G em nossas vidas estão bem retratadas na matéria do programa jornalístico Fantástico de 25 de outubro intitulada " Revolução 5G: conheça a tecnologia que promete conexões ultra-rápidas de internet " do repórter Felipe Santana.
Temas urgentes
Naquele novembro de 2010 escrevi apenas sobre a regulação da Anatel. Em 2020 não foi possível. Temas urgentes como a pirataria de conteúdos digitais prejudica não apenas produtores, mas toda cadeia do audiovisual, inclusive o Seac – Serviço de Acesso Condicionado e convida a Agência Nacional de Cinema – Ancine e a Anatel a atuarem de forma conjunta no combate a esse crime que financia outros crimes. A Ancine saiu na frente com proposta que busca enfrentar essa epidemia de ilegalidade. A Anatel deveria se juntar a ela.
E talvez essa seja a maior mudança estrutural a ser debatida que é a unificação das agências reguladoras. O recentíssimo relatório da OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, Telecommunication and Broadcasting Review of Brazil 2020 aponta para isso. Em que pese a ideia da super agência ANC – Agência Nacional de Comunicação não seja nova, a recomendação da OCDE coloca o tema em debate mais uma vez. Isso sem esquecer que está em discussão a alocação da regulação dos serviços postais para a Agência Nacional de Telecomunicações, como consequência da privatização dos Correios.
A pandemia de 2020 que acelerou transformações tecnológicas e viu acessos a serviços digitais crescerem exponencialmente certamente deixará reflexos de longo prazo para futuras políticas públicas e nova regulação que se apresenta nos anos ainda por vir. Não basta uma Sociedade da Informação, mas do Conhecimento . Não haverá uma Internet das Coisas, mas de Tudo . Nós somos o elemento indissociável do Tudo.
Resgatando a conclusão de 10 anos passados, o novo capítulo a ser escrito não é apenas pautado no ambiente de convergência de tecnologias para alcançar o encontro da regulação com o real interesse público, mas na compreensão de que a ubiquidade tecnológica profetizada por Mark Weiser transcende a comunicação humana. Não se trata mais de voz e dados, mas da simbiose homem-máquina. Everything as a Service, People as a Service, Life as a Service. Um encontro entre rede e pessoas em que a infraestrutura se confunde com seus usuários indo até eles e não o contrário, como até então.
* Sobre o autor: Marcelo Bechara é advogado, diretor de relações institucionais do Grupo Globo, ex-conselheiro da Anatel e ex-consultor jurídico do Ministério das Comunicações . As opiniões expressas pelo autor não necessariamente refletem a posição desta publicação.
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