Desinformação é sempre um grande problema. Durante a crise do Coronavírus, vimos isso acontecer em alguns países nos absurdos episódios de ataques às torres de 5G como se elas pudessem ser causadoras de alguma doença, vandalismo decorrente de teorias conspiratórias e ignorância técnica. Mas aqui no Brasil estamos vendo a mesma coisa acontecer em outra frente. Durante o feriado de Páscoa, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, eloquente filho do presidente da República, passou a criticar a gestão do governador de São Paulo, João Dória, com quem trava uma disputa política, por conta do acordo feito entre as operadoras de celular para uso dos dados de movimentação das pessoas para medir o grau de isolamento. Bolsonaro só não sabia que acordo semelhante havia sido fechado entre o Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações no mesmo sentido, com aval da Advocacia Geral da União, conforme mostramos nesta reportagem , em acordo amplamente divulgado pela mídia e acordado dentro de um Comitê de crise instalado por portaria pelo MCTIC para o acompanhamento das questões referentes à COVID-19 no setor de Ciência, Tecnologia e Comunicações.
Segundo o jornal O Globo, o presidente Bolsonaro teria pedido para suspender o acordo e analisá-lo mais profundamente. A se confirmar essa determinação política, perde-se um tempo precioso na preparação e combate à doença, por pura ignorância. O acordo entre as teles e o governo, que é igual ao acordo entre as teles e o governo de São Paulo e muito semelhante a acordos firmados individualmente por operadoras e outros governos estaduais , nada mais é do que um mapa de calor. Um levantamento da quantidade de pessoas conectadas a cada antena (ERB) e um acompanhamento do fluxo dessa concentração ao longo do dia. Se a mancha se movimenta pouco, significa que as pessoas estão se deslocando pouco e que, portanto, as medidas de restrição impostas por governadores e prefeitos estão sendo mais efetivas. Se as pessoas se movimentam mais significa que o isolamento está menos eficiente e outras medidas podem ser tomadas por autoridades de saúde pública.
São dados completamente anonimizados, que sequer incluem localização de GPS, e estão agregados em centenas ou milhares de aparelhos de celular. A chance de aquela informação ser utilizada para invadir a privacidade de quem quer que seja inexiste. Estes dados ficam disponíveis em um "data lake", uma nuvem pública que pode ser acessada por especialistas e cientistas em busca de padrões de comportamento que ajudem no combate à doença. E só estarão lá enquanto durar a pandemia.
Nem se entra na discussão sobre o quanto seria aceitável em um momento de calamidade avançar sobre direitos individuais, como seria perfeitamente discutível quando a saúde do conjunto da população está em risco. No caso criticado pelo deputado Eduardo Bolsonaro, a quebra do sigilo de comunicação e privacidade é zero. E o uso anonimizado das informações é juridicamente possível diante do Lei Geral de Proteção de Dados, como diz a Advocacia Geral da União. Qualquer coisa é uma decisão política.
É óbvio que as operadoras de celular sabem muito sobre os usuários, especialmente sobre a localização. Sem isso a rede não teria como funcionar. Da mesma forma, empresas de Internet e redes sociais também têm toneladas de informações sobre cada pessoa, e essa é a realidade digital em que vivemos. Usar esses dados com responsabilidade é o desafio de todos os países, por isso o Brasil tem uma Lei Geral de Proteção de Dados, que aliás ainda não entrou em vigor .
Mas no caso específico, o que as operadoras de telecomunicações e os governos (Federal e estaduais) estão fazendo é apenas uma das potencialidades mais básicas das tecnologias digitais entre tudo o que se pode extrair de informação das redes. Na verdade, o acordo com o MCTIC, segundo apurou este noticiário, foi também uma maneira de padronizar a forma de entrega e o tipo de informação partilhada, justamente para não haver contestações e insinuações de uso político em favor de um ou outro governo.
No combate ao Coronavírus, muitas outras iniciativas poderiam ser buscadas, como o desenvolvimento de aplicativos em que as pessoas pudessem manifestar anonimamente se foram ou não testadas e se estão imunes, se estão com sintomas, e esses dados poderiam sim ser cruzados com mapas de movimentação para se detectar com precisão áreas de maior risco e com maior necessidade de atuação das autoridades sanitárias. Esse debate é intenso na Europa, por exemplo, e abre possibilidade de desenvolvimento de ferramentas muito poderosas para políticas públicas adequadas.
Mas estes modelos mais complexos de uso de dados requerem uma autoridade supervisora, e o governo Bolsonaro ainda não conseguiu dizer o que vai fazer (nem se vai fazer algo), em relação à Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANDP). Sem isso, não é possível validar modelos mais sofisticados de uso de dados pessoais para o combate à pandemia.
Nenhum governo deve se mover com base em desinformação e achismo, e certamente o Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações conhece e respeita métodos estatísticos e científicos de maneira geral, e as regras jurídicas que regem a questão dos dados pessoais especificamente. Politizar esta questão pode até ter algum valor para um futuro contexto eleitoral, mas até lá coloca a vida das pessoas em risco e tira do Estado um importante instrumento de política pública.
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